Zoe Fitzgerald e Ciranda166: o papel do facilitador

Zoe Fitzgerald e Ciranda166: o papel do facilitador

Uma conversa sobre facilitação com Zoe Fitzgerald. Facilitadora, consultora, designer de processos de desenvolvimento organizacional e de pessoas, há mais de 20 anos, Zoe esteve na Ciranda166 conduzindo a primeira Masterclass da Kaospilot, reconhecida escola de inovação dinamarquesa.

Confira o bate-papo abaixo e entenda o papel do facilitador

Pia Parente – Eu acredito que o engajamento seja o grande desafio de quem trabalha com pessoas. Como faz para engajá-las em um tema, uma causa, um processo? Qual é a parcela de responsabilidade do facilitador? 

Zoe Fitzgerald – Em primeiro lugar, eu quero reconhecer a coragem de quem se coloca no papel de facilitador. É um lugar desafiador e imprevisível. Mas, no fim das contas, engajar é uma escolha de cada um. O engajamento vem muito da motivação intrínseca de cada pessoa com o tema, o propósito, o trabalho. Meu papel é criar as condições para que o engajamento aconteça. 

Dentro disso, vejo três elementos, que eu procuro trazer para o meu trabalho:

1 – Conexão com a motivação

O primeiro é a conexão com a motivação do participante dentro do seu contexto. Como eu crio espaço, oportunidade, referência para a pessoa se conectar com sua própria razão de estar naquele ambiente de aprendizagem e perceber a relevância de levar o que aprendeu para o seu contexto. 

A motivação intrínseca é fundamental não apenas no início, mas ao longo de todo o processo, pois é ela que sustenta o engajamento. E sabemos que há muita concorrência para esta atenção. 

2 – Oportunidade para a autonomia

O segundo elemento é a oportunidade para a autonomia, a aplicação. Como eu posso oferecer espaço para que a pessoa faça sua escolha e tenha autonomia para fazer do seu jeito, aplicando o que está aprendendo. 

Esta aprendizagem ativa, com feedback imediato, que a pessoa consegue internalizar… isso é muito lindo! A possibilidade de ver seu próprio progresso, seu próprio processo de aprendizagem, acontecendo em tempo real. Até o engajamento físico, de colocar a mão na massa, ajuda a criar condições para que isto aconteça.

3 – Conexão emocional

E o terceiro elemento é como você cria oportunidades para a conexão emocional com o conteúdo e com os outros participantes. Eu acredito que o nosso corpo lembra. Quando fica só no cérebro, no intelecto, talvez o engajamento seja mais pontual. 

Para mim, o engajamento que se sustenta é aquele que tem uma conexão emocional. Pensar em aprendizagem como experiência me ajuda a criar momentos para que essa memória corporal faça parte da dinâmica, assim como a conexão emocional entre as pessoas. 

Nós somos seres sociais, de comunidade, então essa conexão entre nós é bem importante. Na Kaospilot, falamos muito em conexão, antes do conteúdo. Isso também ajuda a criar as condições para o engajamento.

“As habilidades emocionais do facilitador(…) transcendem as ferramentas.” 

Pia Parente – Você está me falando de habilidades emocionais do facilitador, algo que transcende as ferramentas… A habilidade de perceber o grupo muito rápido, um grupo que é diverso e provavelmente desconhecido. Claro que tem uma conexão em comum, que chamou as pessoas para esta aula. Mas como fica esse equilíbrio entre a sensibilidade da facilitação e a metodologia? 

Zoe Fitzgerald – Eu concordo com você, que as duas coisas andam juntas. Precisa de uma preparação inicial, de um desenho de processo que deixe espaço para descobrir, junto com o participante, o seu porquê e também o porquê dos outros, pois eles vão aprender juntos. 

Muitas vezes, tem a pressão do cliente, que quer que a coisa ande rapidinho no início, sem muito propósito, sem muita intenção. Mas eu luto muito para proteger esse espaço de conexão, antes de entrar no conteúdo, pois é a condição para criar engajamento. 

Sobre a sensibilidade, para mim, é muito importante estar aberta para o emergente, para aquilo que vai emergir daquele grupo. É engraçado como certas coisas ficam na nossa experiência… Há uns vinte anos, em um treinamento sobre Art of Hosting, no Canadá, eu aprendi sobre o modelo caórdico, do Dee Hock. Ele fala de um espectro, que tem o controle em uma ponta, com muitas regras, poucas oportunidades de autonomia e muita uniformidade. E na outra ponta tem o caos, onde tem muita autonomia, muita criatividade, pouca produção e pouca entrega. 

Pia Parente – Vem daí a palavra caórdico, que mistura caos e ordem… 

Zoe Fitzgerald – Exato. No paradigma da ordem tem um pouco de previsibilidade: tem processo e tem papéis; em vez de regras tem princípios e é um pouco menos restrito e menos rígido do que o controle. 

O Dee Hock, cofundador da Visa, descobriu que se conseguir operar neste mundo entre o caos e a ordem, é aí que está o potencial para a inovação, a criatividade e o engajamento. A gente pega esse lado bom, positivo do caos, onde tem autonomia e criatividade e junta com o bom da ordem, onde tem um pouco de princípios e de container; de limites, no sentido positivo. É o pulo do gato para facilitadores. 

Eu me lembro que, em algum momento, caiu a ficha que eu estava tentando controlar; me preparava muito, cuidava da minha agenda minuto por minuto… Com as melhores intenções, eu estava tentando controlar o grupo. Quando eu aprendi sobre o caórdico, percebi que controlar não é o meu papel, como facilitadora; mas ajudar o grupo a andar, a conviver no espaço caórdico. 

Isso me ajudou a criar essa conexão sensível e perceber o que está emergindo do grupo, onde está a energia dele, para que as pessoas tenham oportunidade de escolher, de se colocar e de refletir. Tem que ter tempo também para refletir, para que a pessoa possa perceber o que tudo isso tem a ver com ela. 

Pia Parente – O controle achata e limita as contribuições, as pessoas se sentem acuadas e não falam. E quando isso acontece, você fica impedida de entender qual é o propósito delas e não chega no coração, que é onde mora o engajamento. No fundo, o que engaja é o que vem da troca possível entre a gente. 

Zoe Fitzgerald – É sempre uma dança. Mas é bom considerar que temos que trabalhar dentro de limitações: de tempo, de tema. Priya Parker é uma autora que me inspira muito. Ela tem um livro, chamado Art of Gathering, onde fala de autoridade generosa, que é um tipo de condução que ajuda o grupo a saber quais são os limites. 

Aqui é o nosso espaço, o que podemos fazer aqui dentro. Não dá para ir para o controle extremo e nem para a total ausência de limites. É disso que trata a autoridade generosa. 

Uma das ferramentas que usamos hoje, o IDOART, tem justamente essa função de criar acordos claros e compartilhados com o grupo: esta é a nossa intenção, estamos aqui com este propósito, estes são os resultados esperados, como a gente quer colaborar neste espaço, quais são nossos acordos e nossos papéis. Mas, continuando o que dizia sobre estar aberta ao que emerge, essa abertura vem com o risco de ter resistência e de emergirem também os conflitos. 

É por medo de lidar com isso, que muitos facilitadores vão para o lado do controle. Eu fiz uma formação sobre democracia profunda, que traz metodologias sobre a psicologia de processos em grupo. A questão central é: eu, como facilitadora, incentivo ou não “o diferente”? Convido a vocalização do contrário? A perspectiva diferente? Se isso está no campo, é bom que seja dito. É uma contribuição para o grupo.

Como o conceito da  democracia profunda impacta o trabalho do facilitador?

A democracia profunda acredita que tem sabedoria na opinião da minoria. Se a gente não deixa espaço para a opinião divergente emergir, como vamos acessá-la? Ferramentas como a da democracia profunda ajudam a abrir esses espaços. É preciso sentir, perceber e amplificar essas vozes. 

Pia Parente – O risco é inerente à liberdade, não é? Isso tem muito a ver com a Jornada do Herói, do Joseph Campbell que você costuma usar como abordagem. Fale um pouco sobre isso. Quem é o herói desta nossa jornada? 


Zoe Fitzgerald – O participante é o herói da nossa jornada. Eu o convido a sair da sua zona de conforto e tomar o risco no seu processo de aprendizagem, entrando em um mundo desconhecido. 

Essa mudança de mindset, proposta pela Kaospilot, me ajuda a pensar no desenho da experiência, colocando o participante no centro, como protagonista. Isso também me abre espaço para fazer uma facilitação mais engajadora. É a experiência, em primeiro lugar, e o conteúdo como recurso para apoiar a jornada. E tem outros aspectos da jornada do herói que eu gosto de usar como, por exemplo, o mentor. 

O herói não empreende a jornada sozinho, ele é apoiado pelos outros. E aqui, mais uma vez, a importância de dar espaço e tempo para a conexão entre as pessoas. 

Pia Parente – Uma das crenças da Kaospilot é o aprender fazendo. Daí a proposta da masterclass de trabalhar em cima de projetos reais, oferecidos pelos participantes. Como se dá a escolha dos projetos e como acontece essa dinâmica? 

Zoe Fitzgerald – Todos os participantes podem apresentar um projeto para ser trabalhado no coletivo. Nós damos uma ferramenta para ajudar a comunicar a intenção do projeto, a necessidade e o convite que está sendo feito para o grupo. 

Dos projetos apresentados, são escolhidos dois ou três, dependendo do número de participantes. E o próprio grupo se auto-organiza para escolher, seguindo a lei dos dois pés da metodologia Open Space: Se você está em um lugar onde não esteja nem contribuindo, nem aprendendo, use os seus dois pés e vá para outro lugar. 

As pessoas se movem, em silêncio, e se aproximam de quem propôs o projeto escolhido. É um processo que dura apenas dois minutos. Eu, como facilitadora, dou critérios e faço provocações. O que sempre me impressiona é o compromisso das pessoas com o sucesso dos projetos, considerando que a maioria não se conhece e não vai se beneficiar diretamente do que for desenhado aqui. 

Penso que isso tem a ver com o espaço de aprendizagem que cria condições para as pessoas troquem e descubram o que temos em comum. Pesa também o fato de sabermos que é um projeto real, de uma pessoa presente e não um exercício abstrato. A conexão e o engajamento ficam muito fortes.

Metodologias de facilitação da Kaospilot

Pia Parente – Sobre o jeito de facilitar da Kaospilot, o que você acha que tem de mais precioso nas metodologias? E o que você diria que mais impacta o seu trabalho? 

Zoe Fitzgerald – O que fez muita diferença para mim é o que chamamos de currículo escondido. É o conjunto de atitudes, valores e mindsets que precisam ser desenvolvidos, para além dos objetivos da aprendizagem relacionados ao conhecimento técnico. Isso impacta o jeito como eu desenho o programa e como eu facilito. 

Eu preciso desenhar as oportunidades em que esses valores serão necessários. E na facilitação, preciso conduzir as atividades de modo que esses valores possam emergir. Tem um movimento atual nessa direção, que vale a pena conhecer. É o Inner Development Goals.

Pia Parente – Para a gente finalizar, qual é o seu grande propósito como facilitadora? 

Zoe Fitzgerald – Meu propósito é potencializar as pessoas e os grupos e sempre penso o quanto estou fazendo isso. E me pergunto se intervir ou não, dar solução ou não, sabendo que não intervir já é uma intervenção. A resposta é sempre acreditar no potencial de cada pessoa e de cada grupo resolver por si. E tem uma coisa no processo criativo que me encanta. 

Começamos com uma fase divergente, explorando as opções, pensando nas possibilidades até chegar naquela zona de desconforto em que todo mundo acha que vai ser horrível e não vai dar em nada. E então vem aquele momento mágico, a zona do emergente… e sentir a energia daquele grupo que não acreditava que iria chegar aqui.

Eu adoro esse momento, adoro ver o grupo descobrir que pode. E fico muito feliz ao saber, às vezes, um ano depois, que uma ideia que eu trouxe na masterclass, que foi desenvolvida pelo grupo, que ganhou contorno nos post-its, virou um programa que está mudando a vida das pessoas.

https://www.chriscorrigan.com

https://www.priyaparker.com

https://www.lewisdeepdemocracy.com

https://innerdevelopmentgoals.org/